Há tempos venho sendo (pessoalmente)
confrontada com relação ao meu espaço na moda. Quem sou eu? Uma idealista, que
em meados de 2000 começou a se encantar pela potência de um certo tipo de
código não-verbal, que me parecia ser a solução da extensão do meu corpo magrelo,
apagado pela codificação alheia de um corpo feio, espichado e da ocupação de um
espaço que não era (m)eu. De outro modo, lá do alto da minha adolescência,
comecei a entender que ser e estar no mundo não era algo natural. Que a
identidade, não era algo que existia conosco, mas algo que se construía.
Entendi que havia um jogo em exercício e que esse jogo perpassava o apagamento
e iluminação dos sujeitos, conforme um certo tipo de regra, dentro de um tal
tipo de tabuleiro. Singularizar-se, neste jogo, significa recortar a própria
existência dentro de um coletivo, ainda que esta singularidade não seja
descolada da coletividade. Quando sua pele se torna uma parte integrante do seu
avatar, o corpo torna-se um lugar controlado pela jogabilidade. Neste sentido o
corpo aparece como resultado de um regime de significação, condicionado pelos
códigos da própria jogabilidade. Mas é também nesta mesma medida que se pode
tentar romper o espaço limitador do corpo físico, para transpor os limites da
pele e trazer para si uma nova narrativa, uma nova potência criativa,
subvertendo a lógica do jogo, resistindo aos seus comandos perversos e
interessados. E é nesta epifania maluca que a moda entra na minha vida. Como a
possibilidade de transformação de uma identidade dura, como matéria de
expressão de um novo corpo que se inventa, como nova visibilidade, como nova
enunciação. Desde o momento que percebi a importância da plasticidade pessoal,
como processo de subjetivação, me sentei à máquina de costura. Inventei
acessórios de contestação. Pintei camisetas com referências de artistas que eu
gostava e, vez ou outra, estive no chão de fábrica, como menor aprendiz. Localizei
as incoerências de um campo de trabalho cruel e estive em posições que me fizeram
poder protestar e até modificar algumas destas estruturas. A moda para mim,
nunca foi exatamente produto, mas forma de pensamento, lugar de invenção e
(re)invenção de território. Neste meio tempo estudei teatro, artes e até a
própria moda. Tive marca própria, dei cabeçadas no mercado, assinei coleções e
um dia decidi abandonar minha profissão, em uma outra tentativa de desviar minha
própria história, para construir efeitos diferentes. Enveredei meus esforços
teóricos na filosofia, pensando que estava, mais uma vez, derrubando uma antiga
identidade, vestindo uma nova roupagem. Mas o que me afastou da moda e o que me
faz retornar para ela, de maneira diferente? Ora, faz-se necessário elaborar.
Apesar da potência criativa e política dessa manifestação discursiva, que
habituamos chamar as roupas, encontra-se um dispositivo político e social. Como
dispositivo temos todo um sistema que se constitui enquanto um saber coletivo,
ao mesmo tempo em que produz os seus sujeitos, mediados por certos processos de
subjetivação. Deixe-me explicar melhor: quando me refiro à moda como um saber,
quero dizer que se trata de um sistema cognoscível, no sentido de que a sua
atualização se dá mediante visibilidades e enunciações, sendo que estas, são
resultado de agenciamentos coletivos de enunciação. Logo, falar da moda é falar
sobre a construção de um conjunto de saberes, na medida em que ela se apresenta
enquanto vestimenta, conceito, intenção e faz erguer todo um complexo conjunto
de elementos que são compartilhados socialmente e expressos através de uma
imagem, que se torna a própria imagem de um recorte social. Por isso, um evento
cheio de adversidades, como a última SPFW precisa ser comentada, despida, elaborada.
É preciso tecer essa trama, para, no mesmo movimento, desfiar suas fibras e
fazer ver os conteúdos visíveis e exprimíveis que nela se faz presente.
Comecemos pois, pelo caso do modelo que desmaiou e morreu na passarela, em meio
a um desfile. Não conheço as condições que o levaram a óbito, mas não posso
deixar de ignorar como a morte ocupou um lugar menor, frente aos desdobramentos
do próprio evento, que não podia deixar de continuar. “Criamos uma indústria da
moda em que as pessoas morrem e o show continua”- escreveu alguém para nos
fazer pensar na perversidade deste acontecimento. Na mesma medida, o show é
apenas uma matéria de expressão, para pensar em um evento que faz parte da
vida. Um desfile, um evento de moda, tal qual qualquer acontecimento
existencial, é também mediado por um conjunto de saberes, estratificados pelos
códigos visíveis e dizíveis que o fazem tornar-se parte da nossa história, como
arquivo, como vestígio. Assim, parafraseando a frase que eu não saberia citar a
autoria: criamos uma indústria de corpos que morrem e o show continua. Pois, ao
mesmo tempo em que, com razão, nos indignamos e fazemos reverberar nossa
crítica sobre um corpo que falece em uma passarela, não nos indignamos, na mesma peoporção, pelas 23mil vidas negras assassinadas em apenas um ano no Brasil. E
pior, não nos indignamos por uma postura legitimada pelos nossos governantes, de
classificarem as vidas que podem ser violentadas cotidianamente, afastadas da
autonomia da própria expressão, excluídas da educação. Perdemos nosso poder de
indignar com a estrutura que mobiliza o assassinato cruel de uma vereadora que
deu a própria vida pela luta existencial dos corpos supracitados e, ao invés de
darmos voz a quem herdou a dor da perda pessoal da irmã, decidimos
raivosamente xingar um estilista que tentou trazer o assunto à tona (ainda que o caso seja passível de ser levado em consideração). Sem entrar
no lugar da injunção, nosso espaço não tem sido mais povoado pelo debate e
nossas roupas se transformaram em fardas, na medida em que apontamos e
decidimos quem vai e quem fica nesse jogo de interesses. Enfim, todo este
desabafo para dizer que a moda vale a pena quando é pensada para além da
performance e fazer isso é reconhecer a própria performance do nosso espaço em
comum. É preciso repensar a indústria. Mas é também preciso reconhecer os
regimes constitutivos desta mesma indústria, que não está descolada da
existência de um modo geral, mas se insere nesta existência como se fosse algo
banal, tal qual 80 tiros em uma família, os 45 estupros que acontecem a cada
hora no nosso país, a quantidade de marcas que se utilizam de trabalho escravo
para sua produção de roupas, só para citar alguns. Enfim, a morte prematura e lamentável de Tales Newton
Gomes Alvarenga, nos ajuda a pensar na nossa própria humanidade e naquilo que
precisamos nos despir e nos vestir se, de fato, queremos fazer diferente. Muita
paz para seus amigos e familiares e que a nossa empatia não se vista de ódio,
que a nossa potência não se atualize em uma força enfraquecida.