segunda-feira, 29 de abril de 2019

Sobre uma indústria, sobre o show, sobre nossas subjetivações (ou sujeições)




Há tempos venho sendo (pessoalmente) confrontada com relação ao meu espaço na moda. Quem sou eu? Uma idealista, que em meados de 2000 começou a se encantar pela potência de um certo tipo de código não-verbal, que me parecia ser a solução da extensão do meu corpo magrelo, apagado pela codificação alheia de um corpo feio, espichado e da ocupação de um espaço que não era (m)eu. De outro modo, lá do alto da minha adolescência, comecei a entender que ser e estar no mundo não era algo natural. Que a identidade, não era algo que existia conosco, mas algo que se construía. Entendi que havia um jogo em exercício e que esse jogo perpassava o apagamento e iluminação dos sujeitos, conforme um certo tipo de regra, dentro de um tal tipo de tabuleiro. Singularizar-se, neste jogo, significa recortar a própria existência dentro de um coletivo, ainda que esta singularidade não seja descolada da coletividade. Quando sua pele se torna uma parte integrante do seu avatar, o corpo torna-se um lugar controlado pela jogabilidade. Neste sentido o corpo aparece como resultado de um regime de significação, condicionado pelos códigos da própria jogabilidade. Mas é também nesta mesma medida que se pode tentar romper o espaço limitador do corpo físico, para transpor os limites da pele e trazer para si uma nova narrativa, uma nova potência criativa, subvertendo a lógica do jogo, resistindo aos seus comandos perversos e interessados. E é nesta epifania maluca que a moda entra na minha vida. Como a possibilidade de transformação de uma identidade dura, como matéria de expressão de um novo corpo que se inventa, como nova visibilidade, como nova enunciação. Desde o momento que percebi a importância da plasticidade pessoal, como processo de subjetivação, me sentei à máquina de costura. Inventei acessórios de contestação. Pintei camisetas com referências de artistas que eu gostava e, vez ou outra, estive no chão de fábrica, como menor aprendiz. Localizei as incoerências de um campo de trabalho cruel e estive em posições que me fizeram poder protestar e até modificar algumas destas estruturas. A moda para mim, nunca foi exatamente produto, mas forma de pensamento, lugar de invenção e (re)invenção de território. Neste meio tempo estudei teatro, artes e até a própria moda. Tive marca própria, dei cabeçadas no mercado, assinei coleções e um dia decidi abandonar minha profissão, em uma outra tentativa de desviar minha própria história, para construir efeitos diferentes. Enveredei meus esforços teóricos na filosofia, pensando que estava, mais uma vez, derrubando uma antiga identidade, vestindo uma nova roupagem. Mas o que me afastou da moda e o que me faz retornar para ela, de maneira diferente? Ora, faz-se necessário elaborar. Apesar da potência criativa e política dessa manifestação discursiva, que habituamos chamar as roupas, encontra-se um dispositivo político e social. Como dispositivo temos todo um sistema que se constitui enquanto um saber coletivo, ao mesmo tempo em que produz os seus sujeitos, mediados por certos processos de subjetivação. Deixe-me explicar melhor: quando me refiro à moda como um saber, quero dizer que se trata de um sistema cognoscível, no sentido de que a sua atualização se dá mediante visibilidades e enunciações, sendo que estas, são resultado de agenciamentos coletivos de enunciação. Logo, falar da moda é falar sobre a construção de um conjunto de saberes, na medida em que ela se apresenta enquanto vestimenta, conceito, intenção e faz erguer todo um complexo conjunto de elementos que são compartilhados socialmente e expressos através de uma imagem, que se torna a própria imagem de um recorte social. Por isso, um evento cheio de adversidades, como a última SPFW precisa ser comentada, despida, elaborada. É preciso tecer essa trama, para, no mesmo movimento, desfiar suas fibras e fazer ver os conteúdos visíveis e exprimíveis que nela se faz presente. Comecemos pois, pelo caso do modelo que desmaiou e morreu na passarela, em meio a um desfile. Não conheço as condições que o levaram a óbito, mas não posso deixar de ignorar como a morte ocupou um lugar menor, frente aos desdobramentos do próprio evento, que não podia deixar de continuar. “Criamos uma indústria da moda em que as pessoas morrem e o show continua”- escreveu alguém para nos fazer pensar na perversidade deste acontecimento. Na mesma medida, o show é apenas uma matéria de expressão, para pensar em um evento que faz parte da vida. Um desfile, um evento de moda, tal qual qualquer acontecimento existencial, é também mediado por um conjunto de saberes, estratificados pelos códigos visíveis e dizíveis que o fazem tornar-se parte da nossa história, como arquivo, como vestígio. Assim, parafraseando a frase que eu não saberia citar a autoria: criamos uma indústria de corpos que morrem e o show continua. Pois, ao mesmo tempo em que, com razão, nos indignamos e fazemos reverberar nossa crítica sobre um corpo que falece em uma passarela, não nos indignamos, na mesma peoporção, pelas 23mil vidas negras assassinadas em apenas um ano no Brasil. E pior, não nos indignamos por uma postura legitimada pelos nossos governantes, de classificarem as vidas que podem ser violentadas cotidianamente, afastadas da autonomia da própria expressão, excluídas da educação. Perdemos nosso poder de indignar com a estrutura que mobiliza o assassinato cruel de uma vereadora que deu a própria vida pela luta existencial dos corpos supracitados e, ao invés de darmos voz a quem herdou a dor da perda pessoal da irmã, decidimos raivosamente xingar um estilista que tentou trazer o assunto à tona (ainda que o caso seja passível de ser levado em consideração). Sem entrar no lugar da injunção, nosso espaço não tem sido mais povoado pelo debate e nossas roupas se transformaram em fardas, na medida em que apontamos e decidimos quem vai e quem fica nesse jogo de interesses. Enfim, todo este desabafo para dizer que a moda vale a pena quando é pensada para além da performance e fazer isso é reconhecer a própria performance do nosso espaço em comum. É preciso repensar a indústria. Mas é também preciso reconhecer os regimes constitutivos desta mesma indústria, que não está descolada da existência de um modo geral, mas se insere nesta existência como se fosse algo banal, tal qual 80 tiros em uma família, os 45 estupros que acontecem a cada hora no nosso país, a quantidade de marcas que se utilizam de trabalho escravo para sua produção de roupas, só para citar alguns. Enfim, a morte prematura e lamentável de Tales Newton Gomes Alvarenga, nos ajuda a pensar na nossa própria humanidade e naquilo que precisamos nos despir e nos vestir se, de fato, queremos fazer diferente. Muita paz para seus amigos e familiares e que a nossa empatia não se vista de ódio, que a nossa potência não se atualize em uma força enfraquecida.