segunda-feira, 29 de abril de 2019

Sobre uma indústria, sobre o show, sobre nossas subjetivações (ou sujeições)




Há tempos venho sendo (pessoalmente) confrontada com relação ao meu espaço na moda. Quem sou eu? Uma idealista, que em meados de 2000 começou a se encantar pela potência de um certo tipo de código não-verbal, que me parecia ser a solução da extensão do meu corpo magrelo, apagado pela codificação alheia de um corpo feio, espichado e da ocupação de um espaço que não era (m)eu. De outro modo, lá do alto da minha adolescência, comecei a entender que ser e estar no mundo não era algo natural. Que a identidade, não era algo que existia conosco, mas algo que se construía. Entendi que havia um jogo em exercício e que esse jogo perpassava o apagamento e iluminação dos sujeitos, conforme um certo tipo de regra, dentro de um tal tipo de tabuleiro. Singularizar-se, neste jogo, significa recortar a própria existência dentro de um coletivo, ainda que esta singularidade não seja descolada da coletividade. Quando sua pele se torna uma parte integrante do seu avatar, o corpo torna-se um lugar controlado pela jogabilidade. Neste sentido o corpo aparece como resultado de um regime de significação, condicionado pelos códigos da própria jogabilidade. Mas é também nesta mesma medida que se pode tentar romper o espaço limitador do corpo físico, para transpor os limites da pele e trazer para si uma nova narrativa, uma nova potência criativa, subvertendo a lógica do jogo, resistindo aos seus comandos perversos e interessados. E é nesta epifania maluca que a moda entra na minha vida. Como a possibilidade de transformação de uma identidade dura, como matéria de expressão de um novo corpo que se inventa, como nova visibilidade, como nova enunciação. Desde o momento que percebi a importância da plasticidade pessoal, como processo de subjetivação, me sentei à máquina de costura. Inventei acessórios de contestação. Pintei camisetas com referências de artistas que eu gostava e, vez ou outra, estive no chão de fábrica, como menor aprendiz. Localizei as incoerências de um campo de trabalho cruel e estive em posições que me fizeram poder protestar e até modificar algumas destas estruturas. A moda para mim, nunca foi exatamente produto, mas forma de pensamento, lugar de invenção e (re)invenção de território. Neste meio tempo estudei teatro, artes e até a própria moda. Tive marca própria, dei cabeçadas no mercado, assinei coleções e um dia decidi abandonar minha profissão, em uma outra tentativa de desviar minha própria história, para construir efeitos diferentes. Enveredei meus esforços teóricos na filosofia, pensando que estava, mais uma vez, derrubando uma antiga identidade, vestindo uma nova roupagem. Mas o que me afastou da moda e o que me faz retornar para ela, de maneira diferente? Ora, faz-se necessário elaborar. Apesar da potência criativa e política dessa manifestação discursiva, que habituamos chamar as roupas, encontra-se um dispositivo político e social. Como dispositivo temos todo um sistema que se constitui enquanto um saber coletivo, ao mesmo tempo em que produz os seus sujeitos, mediados por certos processos de subjetivação. Deixe-me explicar melhor: quando me refiro à moda como um saber, quero dizer que se trata de um sistema cognoscível, no sentido de que a sua atualização se dá mediante visibilidades e enunciações, sendo que estas, são resultado de agenciamentos coletivos de enunciação. Logo, falar da moda é falar sobre a construção de um conjunto de saberes, na medida em que ela se apresenta enquanto vestimenta, conceito, intenção e faz erguer todo um complexo conjunto de elementos que são compartilhados socialmente e expressos através de uma imagem, que se torna a própria imagem de um recorte social. Por isso, um evento cheio de adversidades, como a última SPFW precisa ser comentada, despida, elaborada. É preciso tecer essa trama, para, no mesmo movimento, desfiar suas fibras e fazer ver os conteúdos visíveis e exprimíveis que nela se faz presente. Comecemos pois, pelo caso do modelo que desmaiou e morreu na passarela, em meio a um desfile. Não conheço as condições que o levaram a óbito, mas não posso deixar de ignorar como a morte ocupou um lugar menor, frente aos desdobramentos do próprio evento, que não podia deixar de continuar. “Criamos uma indústria da moda em que as pessoas morrem e o show continua”- escreveu alguém para nos fazer pensar na perversidade deste acontecimento. Na mesma medida, o show é apenas uma matéria de expressão, para pensar em um evento que faz parte da vida. Um desfile, um evento de moda, tal qual qualquer acontecimento existencial, é também mediado por um conjunto de saberes, estratificados pelos códigos visíveis e dizíveis que o fazem tornar-se parte da nossa história, como arquivo, como vestígio. Assim, parafraseando a frase que eu não saberia citar a autoria: criamos uma indústria de corpos que morrem e o show continua. Pois, ao mesmo tempo em que, com razão, nos indignamos e fazemos reverberar nossa crítica sobre um corpo que falece em uma passarela, não nos indignamos, na mesma peoporção, pelas 23mil vidas negras assassinadas em apenas um ano no Brasil. E pior, não nos indignamos por uma postura legitimada pelos nossos governantes, de classificarem as vidas que podem ser violentadas cotidianamente, afastadas da autonomia da própria expressão, excluídas da educação. Perdemos nosso poder de indignar com a estrutura que mobiliza o assassinato cruel de uma vereadora que deu a própria vida pela luta existencial dos corpos supracitados e, ao invés de darmos voz a quem herdou a dor da perda pessoal da irmã, decidimos raivosamente xingar um estilista que tentou trazer o assunto à tona (ainda que o caso seja passível de ser levado em consideração). Sem entrar no lugar da injunção, nosso espaço não tem sido mais povoado pelo debate e nossas roupas se transformaram em fardas, na medida em que apontamos e decidimos quem vai e quem fica nesse jogo de interesses. Enfim, todo este desabafo para dizer que a moda vale a pena quando é pensada para além da performance e fazer isso é reconhecer a própria performance do nosso espaço em comum. É preciso repensar a indústria. Mas é também preciso reconhecer os regimes constitutivos desta mesma indústria, que não está descolada da existência de um modo geral, mas se insere nesta existência como se fosse algo banal, tal qual 80 tiros em uma família, os 45 estupros que acontecem a cada hora no nosso país, a quantidade de marcas que se utilizam de trabalho escravo para sua produção de roupas, só para citar alguns. Enfim, a morte prematura e lamentável de Tales Newton Gomes Alvarenga, nos ajuda a pensar na nossa própria humanidade e naquilo que precisamos nos despir e nos vestir se, de fato, queremos fazer diferente. Muita paz para seus amigos e familiares e que a nossa empatia não se vista de ódio, que a nossa potência não se atualize em uma força enfraquecida.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

por que (mesmo) eu trabalho com moda?

A incrível mulher coruja na era do rádio - 2009
Colagem digital - Flávia Virgínia


O Dis(positivo) de Deleuze nada tem de positivo. Claro que pensando em positividade como teleologia. Para alguns, se trata apenas de sujeição, produção de subjetividades estáticas, estereotipadas, arquétipos de personalidades. Pode sim tratar-se disso tudo. Lamento o fato de a grande maioria ser mesmo mais um membro do grande corpo organizado. Mas não demonizo. Não julgo. Apenas prefiro os microorganismos que agem não em produção de subjetividade, mas como processos de subjetivação. Sendo micro, operam nas malhas do poder, e enquanto submetidos aos dispositivos, preferem atuar proliferando-se aos poucos, sem anúncios, sem slogans ou promessas, até derrubarem certas formas de poder. Não falo de êxito absoluto. Se tratando dos grandes monstros do capital e da atualidade, aliás, o fracasso é quase certo, mas a derrubada, deslocada, ou seja, os desvios são constantes. A cada movimento pode se comemorar! Foge um personagem do grande espetáculo que consome. E pasmem! Alguns deles fogem, inclusive consumindo. Travestem-se de transgêneros, vestem máscaras, se automutilam nas ruas, praças e galerias. Por isso ando mais amiga dos pequenos incorporados, que dos grandes corpos coletivos que habitam redes e as ruas. Já dizia um grande amigo e irmão que as esquinas é que merecem a atenção. Vejo-as como pontos, pequenos pontos de grandes, valiosos, múltiplos entrecruzamentos. Não sacralizo o capital, ou os dispositivos sacralizados por ele. Por isso também me recuso a profanar. Tais símbolos já se encontram suficientemente impregnados de trajetos por onde nossas mentes insistem em retornar. Para haver liberdade plena, e ao mesmo tempo eventual, é necessário despir-se desses recursos moralizantes, opressivos, totalitários em sua própria concepção. Ficarei com a clichê sub(versão), com o pastiche que engana e gargalha por ser outro sem se transformar eternamente e na próxima “esquina” ser outro ainda. É por isso que eu trabalho com moda(s).

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

a famosa errata



retornei hoje ao blog. como alguém que precisasse mais que um moleskine íntimo para depositar palavras e sintaxe. percebi que exaltei figuras que hoje não me afetam mais, ou me deixei enganar com falsas promessas estampadas nas superfícies. ainda sou amiga da superfície, mas ando vivendo um teatro sem cenário. antes imaginava que havia algo por detrás da cortina. agora, acredito que se há um saber sobre as coisas, tal saber está na própria cortina. se tivermos o acesso a este pretenso teatro, ao escancararmos o tecido que vela o mesmo, nos surpreenderíamos com nada. isto. a própria expectativa que fala do que há por detrás é traída com aquilo que servia para selar, por alguns instantes, o elemento surpresa. no teatro do real acontece assim. já nas artes, os elementos se enriquecem e cedem lugar aos camarins, às coxias, ao cenário, ao figurino e a um árduo treinamento corpório que afirma na existência da interpretação, aquilo que compõe com a cortina um pensamento outro, sem conceitos, sem enquadramentos psicossociais. falam-se apenas afectos, perceptos, sensações. eis outra verdade que se afigura, sem enganar, pois no simulacro  não há modelo. apenas há a sua profanação que se despe junto aos adereços, se desfaz de qualquer promessa. mesmo aquela da satisfação, do riso, do gozo, do choro. figuras de moda mais rasas que o rio arrudas, estilistas mais oportunistas que as bactérias que habitam um corpo. aliás, todos fazem parte deste corpo. um corpo organizado, cheio de órgaos que dispõem seus pares e excluem aqueles que não podem fazer parte. admito aqui mesmo, com letras que não se emparelham com base em hierarquias [ maiúsculas e minúsculas] que muita coisa mudou. abandonado, este espaço pode continuar a ficar, entretanto por ocupar um espaço público e virtual/real/processual, não quero correr o risco dos maus entendidos, dos maus afetos. passa-se um ano e as luzes se transformam. eis aquilo que nos força a pensar. ou, o próprio pensamento. 

terça-feira, 11 de setembro de 2012

verdades produzidas nas fábricas



15:00.
Terça-feira.
(talvez um pouco mais que isso)

 
 
Verdades são produzidas nas fábricas.
Linhas, agulhas, mesas, tesouras, papel, estilete, lápis, caneta, overloque, reta, galoneira, botões, lâminas, mas sinto muito, não há espaço para borrachas.
Numa tarde qualquer naquela fábrica, dentro da sala das mais brilhantes mentes e com o mais alto escalão segundo a hierarquia impressa naquele organograma....
 
Idéias sucateadas.
Palavras que se rebatem no ar como partículas excitadas.
Objetos que são ditos como formas opacas, matérias endurecidas pelos discursos.
Toca o telefone, ela chega. Sua voz sim, é matéria enrijecida e incomoda cortando o vento, retirando a fluidez do ambiente.
Ela não sabe o que diz, mas é o cérebro de toda operação. Supõe tudo como se fossem verdades absolutas. Aliás, o fato de serem afirmadas como verdades, já nos deixa observar que temos aqui a mais clara afirmação de um alto grau de antropomorfismo.  Ora, se as mesmas palavras geradas são, na mesma velocidade engolidas, existe por esse cenário uma significante  transfiguração de sentidos. Diz-se pelos cotovelos, fala pela boca, enxerga com as mãos, mas sem se notar a potente sinestesia dos atos, afastando qualquer sentido pleno da experimentação/produção das coisas.

Afinal, do que exatamente essa pessoa/coisa/entidade diz?
Ela pensava que estava falando de moda. Para ser mais exata de tecidos que se emendam e tomam forma de vestimenta. Linhas que percorrem aquele espaço poroso e escorregadio que são os tecidos, mas não falava bem de tecidos fluidos. Infelizmente ou felizmente, ela dizia de projetos, cujos resultados, consequências, finalidades passavam distantes dessa coisa/conceito moda. Mas também não era experimentação, o que era ainda mais triste. Ela queria por meio da palavra legitimar uma série de tarefas a serem executadas para tornarem vestíveis suas ambições. Via naquela reunião onde não conseguia imperar bem suas idéias uma forma de conduzir e prestar legitimidade à sua sabedoria tola. Era impossível chegar a algum lugar naquele momento em que não sabia experimentar e consequentemente, faltavam-lhe gestos de expressão. Tinha em excesso a linguagem do pastiche, ainda que não dominasse bem esse conceito.
Talvez aí poderíamos encontrar uma solução. Mas não era o caso pois realmente lidava com a moda como mera representação, para se fazer ententida, qualificada em algo, porque sabia que não era boa em nada.

Eis uma rede de verdades tolas sendo formadas.

Seria possível averiguarmos as falhas das proposições geradas naquela sala? Afinal, se tratava de um lugar de produção de roupas/linguagens/conceitos e por assim dizer, verdades. 

Para se fazer roupas é necessário ter experimentado roupas.
Quase como um teorema, lei, movimento,  mas que não diz da roupa fora do corpo ou por cima do corpo. De forma alguma se trata do objeto fora do indivíduo.
Nossas formulações acerca da experimentação passam mais pela idéia da roupa como o próprio corpo.
Moda como devir do existir. A roupa como a própria figura da existência, ou de uma forma de existência, pelo menos.
Agora sim é notória a preocupação com esse espaço (in)produtivo. 
Pensar roupa como a própria vida, é pensar nas quantas vidas somos capazes de produzir e também limitar por meio da matéria moda, ou forma gerada pelo discurso da moda, que também é forma, se não paramos para refletir e buscar a origem das coisas.

Eis aqui apenas uma observação - reflexão - proposição , nada que muda o dia na fábrica. Mais uma vez o sinal toca, o pão está servido, o suco doce na mesa. Todos pensam que pensam, se vestem e se despem. É preciso averiguar, sempre.


 

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Chão nas alturas é mais um texto sobre cavalos (na moda)


Enfim, ela podia respirar aliviada. Passava das 5 e a notícia corria em sua direção. Não mais colheria frutas secas naquele solo improdutivo e nem sequer precisaria ouvir as relinchadas parcialmente cegas e visivelmente tolas. Era mesmo um alívio. Lágrimas escorriam e se confundiam com um riso frouxo do gozo da liberdade, algo que aquele mensageiro especulador sequer um dia experimentaria. Afinal, vivera sempre sob aquele teto seguro, com a qual ajudava a desmoronar enquanto anunciava suas enrijecidas idéias, ou engessados ideais. Me lembro quando uma vez quisera parecer culto citando versos de Victor Hugo e esquecera de mencionar de que contexto se tratavam aqueles conselhos de um amigo enamorado em um contexto socialmente perturbador, ora como ele saberia! Mas confiava nela, embebido mesmo de suas convicções. E era fácil para ela, crer que aquele cavalo sabido de viseira nunca correria para trás ao primeiro sinal de fraqueza e que saberia, ainda que com suas habilidades e elegância de um corredor, que poderia arar com força e persistência aquele terreno infrutífero. Mas veja só, cavalo criado com mimos de um campeão nunca haveria de se meter com as ferramentas da agricultura, mas também não veria o verde solo produtor, já que não era mesmo um campeão. Lamentável o fato da crença ser um verdadeiro amontoado de referenciais e que honestos objetos não podem mais ser considerados versos de verdade. Parece política, mas se trata de instituição, trabalho, sociedade, relações e é claro, poder. Pois bem, o exercício do poder engendra a liberdade, e nos torna potentes, prontos para sermos as construções que nos forem plausíveis, possíveis, excitantes, no mínimo. Por isso, aquela mensagem se assemelha com uma maquina de fabricar sonhos, desejos e ações. Alívio é na verdade a liberdade incorporada na inflexão do poder verbo, que tudo pode naquele que age, acreditando. Melhor escolher trabalhar com as forças que surgem das fragilidades, que pactuar com as mentiras lançadas, os verdes que não se voltam maduros e incompetência dos infelizes aprisionados no próprio pensamento. É um alívio respirar serenidade e juventude e saber que aqueles que ficam não serão capazes de durar com tanta alienação, ou se durarem, ficaram presos naquele pedaço de terra árido e com vida seca. Perder o chão significa ter que aprender a voar, e acho que esta noite é exatamente isso que ela irá fazer.  

quinta-feira, 12 de julho de 2012

O limite do corpo e a lenta morte do ser




Ninguém nunca morreu disso. Dizia ele sobre o calor. Há controvérsias. Há enganos e equívocos. Na linguagem pragmática dele, pode se dizer que sim, muitos já morreram de calor por esses desertos em torno do globo. Talvez muitos tenham morrido de desgosto, no calor do sertão, pela falta de cuidados, pela forma desleixada com a qual o mundo parece tomar forma para eles. É. Tenho o cuidado de querer saber demais. De enrolar-me ao canudo que com muito custo conquistei, para ver minha obra com desdém. Não posso culpar a miopia alheia, nem achar que eu faço mais que os outros não conseguem enxergar. Somente solicito alguém capaz de me provar o contrário. Aliás, adoro ter que me despir das armaduras enrijecidas que vivo criando para mim, como forma de proteção. Estas armaduras não fazem mais do que pesar. E é com pesar (das armaduras), que discorro sobre o calor. O calor que não mata repentinamente, mas mata aos poucos. Encoleriza o indivíduo, até que ele derreta e se torne um corpo pequeno demais para ver, para falar. Mas ele sente. Ele está ali, de uma forma ou de outra. É sensível ao calor e também à falta de clareza. Ou seria de claridade? Pois aquele lugar deixa os olhos ardendo e a visão embaraçada. Difícil ver e olhar com uma visão assim. Passo então a elucubrar acerca de ilusões, situações criadas, irreais e reais. Eis que a falta da claridade, (ou seria clareza?), começa a tornar a jornada ainda mais árdua e vai tornando o objetivo de morte ainda mais forte. Hora de preparar o luto e nascer de novo.


segunda-feira, 18 de junho de 2012

Estrangeiros, apareçam na moda!


É preciso uma estrangeira pra falar de moda.

 Cris e sua mala de estrangeira. Fonte.:www.hojevouassim.com.br

Cris Guerra é publicitária, não é estilista, não é bem uma jornalista de moda oficial, não é produtora de moda, nem fotógrafa de moda, maquiadora e outras profissões da moda. Às vezes, quase sempre ela consegue ser tudo isso, e ainda, para além disso. É comum ler que Cris, do blog Hoje vou assim ama moda, tem o primeiro blog de looks diários do Brasil, se veste muito bem e isso não é novidade para ninguém que acompanha notícias de moda. O que poucos sabem, ou melhor, dão pouca importância, e chama pouco a atenção é que talvez, aqui no Brasil, a Cris seja uma das poucas pessoas que levantam embates pertinentes acerca das potências da moda. E diz isso pra muita gente. Isso não significa que ela seja uma acadêmica e que faça isso citando um amontoado de referências bibliográficas. Nada disso, Cris usa a moda como motor de comunicação, comportamento e linguagem. Alguns ditos acadêmicos por aí vão dizer que eu estou louca, afinal tudo que faz sucesso e alcança a massa parece ser renegado ao menor, ao mais frágil e ao superficial. Pois bem, eu acredito que é nos discursos das superfícies, do efêmero é que se cria e se sustenta a época contemporânea. Nos dias de hoje, muitos de nós carregamos discursos que apresentam por características a superficialidade, o visível. Fazemos isso até mesmo sem ver, pois vivemos numa época de imagens, muitas (inúteis) por sinal. Por isso voltando a Cris, suas impressões a partir da moda, correspondem associações pessoais, ainda que dotadas de referenciais internos, externos e materiais que compõem nossa subjetividade, aquilo que pensamos ser puro, mas que de fato, é bastante diverso e mutável. 

Pois bem, a começar pelo uso da moda, como linha de fuga para a sobrevivência emocional. Cris tem em parte de sua história uma perda, que parece ter mudado sua vida por completo. Para quem a lê, nas palavras bordadas por roupas e nas letras que Cris também disponibiliza ao leitor, ela relaciona a moda ao seu corpo que pulsa emoções, intenções e faz desse conjunto um potente campo de afecção que envolve a si mesma e aos outros. Percebe que coisa mais bonita? Como na moda, sem ser pesado de mais, ao contrário, a partir da leveza, é possível fazer poesia que enriquece o olhar, inspira e colore o dia? Poesia pura, eu repito. E Cris, nessa honestidade despretensiosa e cheia de intenção conseguiu falar e escrever palavras impressas em roupas, compostas em looks como forma de convite para uma conversa, um cumprimento e até mesmo uma questão e sem precisar ir longe demais colocar frutas na cabeça ou coisas do tipo. A força da Cris está na afirmação de um poder da moda a partir do gesto trivial e da ação cotidiana do vestir. O universo dela ao encontro do universo da indumentária.

Lipovetsky, importante filósofo da moda e da “hiper-modernidade”, já dizia que a moda liga-se ao prazer de ver e de ser visto. De fato, ser visto é poder manifestar e ver é uma forma de agregar repertório e conhecimento. Em relação ao prazer, não é somente o deleite ingênuo, mas prazer está relacionado a muitas formas de pensamento e criação. Sinto prazer, por exemplo, no que me acrescenta, no que me preenche de beleza, isso tendo em vista meu conceito de beleza e que está prestes a mudar na próxima esquina. Efim, tudo isso para dizer que acho lamentável a deturpação do sentido da moda, quando aprisionada a elaborações endurecidas do gosto, gosto comprado por um sistema que busca padronizar e vender modos de vida, que são revendidos pelos “naturais” da moda. Assim sendo, desejo que tenham mais estrangeiros, ainda que disfarçados para falar sobre moda, com palavras, tecidos, linhas, bordados, gestos e ações. 

Para conhecer mais da Cris, ela tem outros blogs Cartas para Francisco e Amor e ponto.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Ronaldo Fraga e a sobrevivência da Moda

Ronaldo Fraga - verão 2013. Fonte: FFW

 
Não é tudo que Ronaldo Fraga fala que eu curto não. Aliás, detesto gente da mídia, cabeças pensantes que soltam ao ventilador frases e palavras de efeito que assim como poeira, são consumidas pelos ares. Há poucos meses o estilista declarou o fim da moda. Claro, afinal tudo tem um fim e desde meados dos anos de 1950 os objetos perderam seu valor em detrimento da significação. A moda sabia disso, sempre soube. Mas alguns desavisados da indústria seguem imperando o mercado, construindo objetos, peças de roupas, vestuários cíclicos e sem imaginação, ou reflexão. Aliás, faria sentido fazer diferente? 

Pode ser que sim, penso eu. A ferramenta é a mesma: a moda. Mas a roupagem, definitivamente é outra, quando se pensa os efeitos e afecções que a indumentária proporciona. E sabe, Ronaldo Fraga parece saber disso bem, apesar de ter que se subordinar a uma indústria, que sustenta, emprega, custeia, enfim, que faz girar o capital. Declarar o fim da moda, em meados de 2011 no ápice da crise varejista, no declínio das marcas nada senso comum, nada comerciais, parece frase solta, jogada sem critério ao vento e justifica sua ausência no grande circo da moda brasileira. Se o cara “fraga” mesmo do que se trata fazer moda, dizer moda, usar da moda como ferramenta de afecção, era preciso retomar o fôlego e voltar a escrever suas histórias enriquecidas de elementos da cultura tupiniquim, que a meu ver são esquecidos ou tratados superficialmente pelo time oficial da moda. Leiam-se, marcas que representam a moda brasileira nas maiores semanas de moda do Brasil. 

Pois bem, Ronaldo retoma o fôlego, volta para a passarela e lá vem ele anunciar sua ideia da vez: “Vão sobreviver marcas que tiverem alma”. Nesse momento acho fundamental desligar os ventiladores e tentar capturar do que se tratam essas palavras. Uma primeira ideia poderia relacionar alma à essência, e nesse caso, seria uma última possibilidade de suspiro e afirmação da vida buscar o que haveria de mais elementar nas marcas, sua potência de ação diante da vida. Ao dizermos de potência de ação, podemos nos remeter à orquestra do corpo, apresentada na fenomenologia de Merleau Ponty. A potência da ação representa para o filósofo uma espécie de anunciação do meu corpo no mundo, ou a única forma de eu me reconhecer como parte desse mundo. Voltando à moda, numa segunda ideia proponho tomar de assalto a importante frase de efeito nos dada por Ronaldo Fraga e digo: somente é possível para as marcas da moda, se inserir como parte do mundo, quando as mesmas tiverem a clara noção de sua potência de ação, daí é possível sobreviver. 

Se Merleau Ponty afirma a motricidade, partindo do corpo, como se daria o esquema corporal da moda? Quais seriam suas possíveis ações? É sabido que para cada corpo, existe um conjunto de movimentos. Em cada corpo há um organismo dotado de órgãos, (do tipo biológico ou políticos) e esses órgãos estabelecem fronteiras e segmentam a vida mediando ações. Nesse ponto de enrijecimento a moda precisa ser capaz de ir além dessas linhas duras, delimitada pela crítica medíocre dos periódicos de moda, pelos próprios ecos do mercado e da indústria e até mesmo pela própria mídia construída com base num direcionamento de mentalidades. O corpo da moda é mais que maleável, ele é formado de linhas, que não somente costuram “tecituras”, mas se emaranham sob os corpos, se cruzam, se conectam, se rompem, se fazem e desfazem e quando achamos que podemos mapeá-las, essas linhas já tomaram outros direcionamentos, tal qual os acidentes no solo, as dobraduras das moulages, aquelas posições que chamamos de acaso, mas como diria Deleuze, somente damos esse nome por não darmos conta de dizer de outro melhor. É preciso para a sobrevivência da moda, que ela se movimente para todos os lados, de todas as formas, não formas e velocidades. É necessário que se tome a alma e o corpo como imanência, ou seja, que não transcenda essa alma para algo que não seja ação ou experimentação do corpo, como foi proposto por Spinoza, lá no século XVII. 

Seja então após uma tórrida crise industrial, um abalo criativo, ou adversidades diversas, Ronaldo Fraga consegue afirmar a vida e convida outros corpos a compartilhar dessa celebração a partir da matéria da moda e faz jus a proposição da alma como ação, numa coleção bonita desfilada na passarela. Agora sim podemos voltar a ligar o ventilador e construirmos nossas próprias sentenças com as palavras que voarão por aí, e pessoalmente, espero que essas palavras se conectem e fortaleçam o cenário da moda atual.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

a respeito da logística

Frase do dia: a teoria da ciência indutivista é uma furada. Fato.



Observamos que as empresas baseiam seus relatórios em resultados, mas de forma infundada, uma vez que as afirmações que conduzem esses resultados são falsas. 

Como podem dizer sobre o que as pessoas querem, se o momento da oferta é um momento onde se usam óculos opacos que limitam a visão? 

Santa maria da miopia administrativa.

a frase nunca chegará.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

é tudo parte de um jogo de cartas




Expectativa. Ansiedade. Suor frio. Mãos geladas. Inúmeras mastigadas e ainda um escrever esquizo, que abarca as ações do momento, ou as ações que atravessam os poros e se tornam matéria.  Performance. Análises dessas performances. Um agir pessoal de criação em torno do tempo e do espaço. Como se algo pudesse acontecer e interagir a qualquer momento. Tosse de um outrem. O telefone toca. Ufa, dessa vez não é para mim. Uma porta se abre. Não sai ninguém. A porta se fecha, junto aos pensamentos de expectativa. Expectativa mesmo de quê? Enquanto escrevo, meu coração pulsa. Sei exatamente o ritmo que ele bate. Erro o texto e percebo que o coração abate qualquer senso de tranquilidade. De repente o meu telefone toca, ânsia, desespero? Ufa, é só você me ajudando a construir um bom final para isso aqui e dizer eu te amo. Estou novamente em paz.

terça-feira, 22 de maio de 2012

matemáticas e abstrações ou seria um texto sobre o caos?





As paredes têm ouvidos. O tecido é feito de tramas. Meu corpo escuta tudo. Dúvida, mistério, incerteza. Eu não creio que afirmações matemáticas digam de verdades. Falam em teorias, mas já se mostraram frágeis mediante ação. Números e abstrações provocam distúrbios das mais diversas ordens, mas o sentido originário da ineficiência repousa sob a incapacidade de uma ação essencialmente racional. Os números protegem o discurso, quando a ordem dos fatores altera o seu produto. No entanto, estamos aqui falando em estética, e não há nada mais plausível que mudar essa equação. Proponho então, que o caos dos fatores _sempre mutáveis_ alterem o seu produto. Caos como o cenário estético/ético coerente à realidade espacial e caos como potência de mudança, ação, afirmação. A ordem estabiliza os fatores e corrompe qualquer possibilidade de movimento, torna-os estáticos. E o produto que se apresenta não condiz com o ordenamento dos fatores, nem quando a ordem é instituída, afinal se o produto se constitui como objeto, muito pouco valor ele tem em detrimento das forças que envolvem o seu entorno infinito. A indumentária fala além e aquém dos tecidos, linhas e dobras que a compõe. Diz de um estado de ação no mundo e possibilidade de engendramento de novos mundos. A força da moda está nos atravessamentos que ela propõe ao inferir no olhar do outro, como uma catapulta que lança corpos, idéias e afetos e os transformam. Precisa de ordem dos fatores? Pois eu apresento o que sou capaz de mapear num dado instante. Saia, corpo, vestido, flor, pedras, sujeira, vestígios, animal, couro, pele, sangue, magenta, tachas, bicho, cobra, onça, píton, solado, salto, look, estilo, caro, barato, vintage, compra, venda, troca, furto, brilho, ouro, latão, rebite, spike, paetê, tudo isso é poesia jogada na pele, jogada ao vento, virais cotidianos que me infecta, te infecta e nos envolve. Poesia é travessia que dá conta do verbo pela metáfora que adentra a pele da moda como um espirro mal educado que não pede licença. A pele do corpo impera operando incertezas, formas de vida, estados de ação. Vulnerabilidade. Adversidades a parte, não há como agir diferente, a menos que as mentes sejam pequenas por demais e os códigos só se expressem em simbologias duras o suficiente para ignorar a ambiência na qual estão inseridas e permitir codificações finitas. Objetos ignoram o espaço objetivo da percepção que o corpo experimenta somente estando lá e sabendo que pode se mover. É fazer metafísica sem metafísica e deixar latente uma percepção além do corpo, da matéria e das formas, mas imanente ao mesmo corpo que o experimenta e produz. A fenomenologia vai dizer o esquema corporal como consciência da ação e realização, que se configura também no virtual e não há mistério para dizer das afecções que não passam pelas superfícies porosas do tecido da pele, tecido da roupa tecido (verbo) de fibras e fios.  Não há ordem sem caos, nem ação sem mudança. É preciso experimentar e elaborar o novo que atravessa e grita nos tocando na alma. Moda, corpo, verbo, tudo é experiência.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

devaneios sobre a ação prática da moda



Estampa Superfícies porosas (Virginia Lotus) - 2009 - Extraída de um trabalho de arte produzido e exposto no mesmo ano.


Aventure-se ou serás vencido! Esse deveria ser o lema de qualquer estilista, designer e afins que desejam se inserir no mercado. O sistema tem lá seu compromisso de apresentar ao coletivo, umas verdades, e a subversão dos meios para isso é o que mantém vivas as utopias daqueles que se posicionam lá. Vender tem a potência de dizer e dizer tem a possibilidade de alcançar o outro em um exercício cotidiano de afetar e ser afetado. Trabalhar com moda, desenvolver produtos e discursos requer um trabalho de reflexão, pesquisa e ação.  

Pessoalmente não consigo concentrar naquilo que não gosto, não acredito e não me esforço para executar. Ainda não fui arrebatada pela “magia” de saber as medidas exatas do corpo humano, aliás acho isso muito chato e agressivo, ter que impor a ordem de um território que é pura afecção. É também tedioso travar discussões acerca da nomenclatura dos elementos da indumentária e ver que o “vivo” tem a capacidade de morrer na linguagem de quem não se compromete com a potência da moda, fato que me parece demasiadamente empobrecedor.
O encontro do novo, mesmo apresentado velho, sujo, rasgado e cheirando a mofo é mais interessante que a angústia de servir a um mercado invisível e projetado por cegos incompetentes que não pensam na potência da moda quando inserida ao social. Não consigo lidar com a carta mal enviada, rasurada por quem não foi autorizado e entregue sem cuidado. Fica difícil passar a mensagem e continuar lutando, em resistência à visão rasteira e míope dos donos do ouro (nem todos, mas boa parte). Um estilista deveria saber que uma peça de roupa é palavra, parte (verbo e ligação) de uma mensagem que se insere na formulação verbal de uma sociedade que se constrói a partir de códigos. É difícil dizer ao mercado, que para se dizer alguma coisa e se fazer entendido é necessário conhecer seu interlocutor, que se apresenta individual, mas carrega cosigo uma coletividade repleta das mais diversas naturezas. Como ignorar alguém que compra o seu discurso? Como não dar ouvidos à fala de quem escolhe as palavras ofertadas por você? E também o contrário, é necessário que aquele que oferta se apresente de maneira coerente com sua verborragia. Dizer é mesmo um ato muito perigoso, praticamente uma aventura. Dessas que feitas com um ponto de interrogação, provocam respostas. Uma pergunta.(?) A famosa indumentária duvidosa é um convite à criação. Finalizo esse devaneio com o desejo da aventura, da dúvida e do erro como possibilidade de fala, que elogia, mente, grita, xinga, critica, sussurra, canta, discursa, questiona e também se cala.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

resposta ao convite à vida



ou a respeito do que corre debaixo da pele......





Ao deparar-me com os escritos em prosa tracei uma conversa. E quase um ano depois me sinto à vontade para manifestar. Porque só agora diante do meu sentimento latente, da minha incerta certeza, escutando que eu sou TUDO para um outro é que eu consigo encher o meu peito e dizer que o amor visto de cabeça para baixo é outro amor. Não consigo nem dizer se é só amor, porque essa palavra que dá voz aos poetas parece pequena perto dessa completude que atravessa cada mínimo poro do meu corpo e me faz (a) mulher, amante, amiga, mãe, e me torna o outro. Amor, ou essa coisa que não sei o que é, parece ser o devir-existencial. Devir da própria existência. Tornar-se existir. Devir no próprio devir. Não me reconheço sem essa dose desse algo mágico, fantástico que nos completa, nos envolve e nos torna tudo, um para o outro. Evidência de que o amor não é o mesmo. Não poderia pensar assim e dizer que falo da mesma coisa, uma vez que experimentamos o diferente sempre e sendo nós mesmos. Já poderia afirmar Heráclito sobre o ato de mergulhar em um rio. Acredito na experiência que mergulha no corpo e se banha nesse movimento de ir e vir, de levar, trazer e se perder. Experiência imanente ao corpo. Dessas que não se experimenta duas vezes o mesmo. Nem com o mesmo, imagine com o outro. Ocupo-me de ser sempre ação, nova ação. Dotada de ações íntimas que se reconhece num afago apertado, em seu sentido originário: no amor. Doar, receber, compartilhar. Falamos dos símbolos, códigos, linguagem. Somos coerentes com nossas abordagens, que afirmam a existência a partir da linguagem. Deixamos assim para permitir experimentar tudo o que nos é ofertado dessa novidade, desse novo experimento, desse convite precioso que a vida nos proporciona. Status em redes sociais enchem esse mundo de alegorias, que colorem cinzentas manhãs e nos fazem divertir ao percebermos a ordem pragmática dessas ações. Dizia Peirce, um pensador do seu território, que a pragmática diz dos afetos que ela é capaz de causar naquele determinado objeto. Pois, bem! O objeto que deixamos o outro enxergar com sua miopia é envolvido por esse fragmento afetivo que selecionamos para compartilhar deixando a maior fatia dessa coisa para o nosso próprio ritual. Para nós dois, naquele agosto, dois meses após nossos olhos se atravessarem, entendemos o que as nossas almas almejavam e exigiam de nós. Precisávamos completar o laço daquela fita enroscada, entregue por deus ou pelo diabo, tanto faz, se tratava de um tesouro. Estabelecemos nossas juras e sentíamos pulsar alguma coisa que a gente chama de amor, mas sabemos que vai além do amor dito por nós dois em tempos que não havíamos deixado nossas almas se cruzarem e nossas afecções se atravessarem. Lembro-me quando fomos pegos pela surpresa desse arrebato que não conseguíamos nomear, somente pudemos dizer o quanto parecia que formávamos uma coisa só. Não era necessária a linguagem para além dos olhos, dos afagos e dos suspiros. De fato ainda não é. Compreendemos a movimentação da nossa alma ao encontro do outro e dizemos disso como o mistério do mundo, como a única forma de vida. Nesse sentido aceitamos o convite e fazemos bailar a nossas almas embriagadas de intensidade ao som do gozo do novo que permitirmos escutar com o corpo e alma e nos deixamos envolver. Para todo o sempre, pois minha alma sabe disso. E a sua também.


terça-feira, 15 de maio de 2012

moda - pele - repetição


Produzir, produzir, produzir, até fazer diferente. Manoel de Barros já dizia isso sobre o repetir. Uma ação potente de (re) fazer algo inúmeras vezes. A multiplicidade da ação de fazer de novo ganha corpo quando se assume que se faz de novo, novamente, outra vez, repetidas vezes, inúmeras vezes, ad infinitum... Compreende? São apenas palavras. E se engana quem pensa que falo aqui de sinônimos. Não. Minha reflexão passa pela multiplicação dos signos e engendramento de sentidos. Posso falar da moda. Posso falar da arte, da literatura, da música e do discurso. Discursos inclusive do cotidiano. Quem fala repetidas vezes uma mesma coisa, corre o risco da variedade de ouvidos. Ouvidos duplos de uma mesma pessoa. (Ou)vidos múltiplos de uma mesma pessoa, que por sinal são muitas. Repetidas em um mesmo corpo, entre uma mesma pele porosa, que por vezes rodeiam o próprio rabo. Isso é só um fato. 

Falo da repetição porque vivemos em ciclos. Ciclos cíclicos imperfeitos. Que poderiam até ser quadrados, trapézios, ou forma da nada.  E de tão imperfeitos, esses ciclos-nada carregam em si a maior perfeição que se pode imaginar. Cabem em qualquer lugar. E cabem mesmo. Ao passo que vão além de qualquer espaço, qualquer tempo, ou temporalidade. Quase ocupam um não lugar. Quase ocupam um espaço de tempo que não dá pra cronometrar. Nossos ciclos também são imateriais, incorporais, mas não descolam do corpo e do indivíduo. O não-corpo é imanente ao indivíduo. Ele, somente ele é capaz de produzir esse nada, essa não ocupação que é também ocupação de tudo. Como lidar com o fato de que o corpo é suporte da arte, do comportamento, da manifestação da vida, se o corpo não está lá? Se ele se apresenta negando, mas não como um acorpo, e sim como um não-corpo – logo o corpo está ainda lá.

Estaria esse não-corpo presente debaixo da pele? Debaixo dessa superfície que nos é apresentada como nossa maior proteção, o maior órgão externo, mas que também é poroso, portanto interno? Ou seria esse não-corpo isso que é interno, externo, visível e invisível, para além do indivíduo? Prefiro crer na produção do indivíduo que vai além do corpo, do pensamento e da ação. Por isso inicio o meu chamado convidando a produzir. Entrelaçando essa produção com o repetir. Um convite ao engendramento de sentidos. Fazer denovo, inúmeras vezes como disse, até fazer diferente, encontrar a diferença, formular, elaborar novos modos de vida. Eis a afirmação de ser no mundo. A afirmação de não somente existir pela sobrevivência das ações. Se você me diz que eu faço isso errado, eu acho ótimo. Deve haver mais outras zilhões de formas de fazer diferente. Fazer de Novo, algo novo, por assim dizer. Eu necessito disso para sobreviver nessa minha ação. Não sei, não posso e não consigo parar. Estou à beira de um abismo. De um jardim. De uma praia. De uma avenida. De um canteiro em obras. Corrijo-me. Já não estou mais à beira de nada. Estou no meio, no entre, no vazio, na minha percepção corporal e incorporal. Não há mais tanto sentido em ficar na beirada de nenhum outro corpo. Preciso de cruzamentos, esquinas, pontes, cadeira, tabuleiro, espelho, vidro e maçã. Isso porque a essência dos gregos não cabe mais em mim. Não há conceito que me responda em afectos. Não há elaborações que me façam chegar até a origem que o bigodudo tanto fomentou. Essa origem da percepção do corpo, que atravessa, muda, multiplica, corta, prensa e transforma. Produzir, refletir, transformar. E fazer tudo isso de novo. De um jeito novo.